Justiça Federal de Santarém
determinou que a identidade dos povos Borari e Arapium não existe. Para o MPF
sentença viola a Constituição e a Convenção 169 da OIT
O Ministério Público Federal
em Santarém apresentou apelação cível contra decisão da Justiça Federal de
Santarém que determinou que as etnias indígenas Borari e Arapium são
inexistentes. A decisão, do juiz federal Airton Aguiar Portela, assinada em
dezembro de 2014, negou o direito de autorreconhecimento dos povos indígenas,
decretando que ambos, há anos em conflito com madeireiros e com as terras já
delimitadas pela Fundação Nacional do Índio, são formados por “falsos índios”,
ribeirinhos que teriam deixado de ser índios.
Para o MPF, ao negar o
autorreconhecimento e o trabalho técnico dos antropólogos que delimitaram a
Terra Indígena Maró, a sentença “incide na mesma prática que tenciona
historiar, qual seja, o etnocídio de povos indígenas. Trata-se de mais um
expediente de esbulho renitente que vêm sofrendo tais populações desde que as
cortes europeias invadiram o Brasil nos idos do século XVI. Afinal,
invisibiliza etnias indígenas existentes e os insere na massa da sociedade
envolvente homogênea, tal como fizeram os colonizadores”.
A sentença foi publicada
algumas semanas depois de uma operação de fiscalização realizada pelo MPF,
Funai e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), que embargou todas as
permissões para exploração madeireira que incidiam sobre a terra indígena. Na
decisão, o juiz Airton Portela juntou duas ações judiciais – uma do MPF, que
pedia a urgência na demarcação da terra Maró e outra de associações de
trabalhadores rurais que temiam perder suas terras com a demarcação. O processo
das associações, no entanto, deveria ter sido extinto, uma vez que, na
publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI
Maró, ficou claro que as terras onde moram essas comunidades ficaram fora da
demarcação.
As próprias associações, com a
publicação, pediram a desistência da ação, mas o juiz ignorou o pedido e
determinou o seguimento do processo. O MPF informa, no recurso apresentado
semana passada ao Tribunal Regional Federal da 1a Região, que o mesmo advogado
que assina o processo das associações é advogado de diversos madeireiros que
tiveram licenças embargadas na terra indígena. E, durante os trabalhos de
delimitação, a equipe da Funai foi ameaçada de morte por madeireiros na região.
Um relatório técnico de
vistoria feito pelo Ibama também comprova a presença e o interesse dos
madeireiros na terra indígena, oferecendo máquinas e combustível para
lideranças comunitárias em troca de apoio no processo contra os indígenas. “Há,
ainda, uma tática que nos parece clara, por parte dos empresários, de
desqualificação das lideranças que se opõem aos interesses dos mesmos, cuja
face mais visível é a das lideranças dos auto-declarados povos indígenas. Essa
tática inclui matérias, aparentemente pagas, na imprensa, onde essas lideranças
são chamados de 'falsos índios', em discurso que é disseminado na região, e que
começa a ser assumido pelas lideranças comunitárias favoráveis aos
recém-chegados, além de contaminar de maneira sub-reptícia, o discurso daqueles
que deveriam tratar a questão com o máximo de distanciamento possível”, diz o
relatório juntado pelo MPF.
O procurador Camões
Boaventura, responsável pelo caso, chama atenção ainda para as impropriedades
científicas cometidas na sentença. Ao discorrer sobre identidade,
tradicionalidade e outras questões típicas da ciência antropológica, o juiz
cita, fora de contexto, antropólogos brasileiros de renome internacional, como
Eduardo Viveiros de Castro. Na verdade, a citação utilizada pelo juiz foi
retirada de reportagem da revista Veja, já denunciada pelo próprio antropólogo
e pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) como fraudulenta.
A pedido do MPF, Eduardo
Viveiros de Castro emitiu parecer sobre a sentença em que refuta as
considerações antropológicas do juiz e repudia o uso distorcido de seu
pensamento. A antropóloga Jane Beltrão também emitiu parecer contra a sentença,
assim como Raphael Frederico Acioli, analista do MPF. Além disso, o professor
Gilberto Lopes Rodrigues, da Universidade Federal do Oeste do Pará, ofereceu
nota técnica para embasar o recurso judicial.
Para o MPF, a sentença
contribui para o esbulho de que os povos indígenas são vítimas há séculos,
copiando métodos muito conhecidos desde o período colonial, de retirada de
direitos e negação de identidades culturais indígenas. “É nesse contexto que os
povos Borari e Arapium, muito embora estejam habitando a área da TI Maró há
séculos, somente buscaram empunhar a bandeira de suas identidades indígenas.
Assim, neste momento, não houve conversão de ribeirinhos em indígenas, como
quer fazer crer o juiz prolator da sentença. O que houve, repita-se, foi um
legítimo processo de reavivamento de uma identidade coletiva específica, sempre
existente, mas que dormitava face os constantes processos de opressão e
sonegação de direitos”, diz o recurso do MPF.
O MPF pede que, ao reconhecer
o recurso, o tribunal determine a suspensão das permissões e proíba a
circulação de madeireiros na área indígena, assim como o prosseguimento da
demarcação. A apelação deverá ser julgada no TRF1, em Brasília.
Processos nº
2010.3902.000249-0 / 2091-80.2010.4.01.3902
Íntegra da sentença:
http://www.prpa.mpf.mp.br/news/2015/arquivos/Sentenca_TI_Maro.pdf
Íntegra da apelação:
http://www.prpa.mpf.mp.br/news/2015/arquivos/Apelacao_MPF_TI_Maro.pdf
Ministério Público Federal no
Pará
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